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Absolvições, competência do STF e acesso a provas: os oito pontos de divergências entre Fux e Moraes

Ministro contestou decisões anteriores da Corte, afastou acusações centrais contra réus e defendeu limites mais estreitos para a aplicação de tipos penais

Por Agência O Globo - 11/09/2025
Absolvições, competência do STF e acesso a provas: os oito pontos de divergências entre Fux e Moraes
(Foto: Ministro Luiz Fux (Foto: Felipe Sampaio))

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), abriu na quarta-feira uma série de divergências em relação ao voto do relator, Alexandre de Moraes, no julgamento da ação penal da trama golpista. As discordâncias ocorreram desde os pedidos preliminares, como a competência da Corte para julgar os réus e o acesso das defesas às provas, até o mérito das acusações, como a caracterização de crimes como organização criminosa, abolição do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.

O julgamento será retomado nesta quinta-feira com o voto de Cármen Lúcia. Depois dela, ainda falta o presidente da Primeira Turma, Cristiano Zanin. Flávio Dino, que já votou na terça-feira, seguiu Moraes na maior parte do seu voto.

Um eventual apoio às divergências de Fux, ou a apresentação de novas discordâncias, pode abrir caminho para recursos das defesas no futuro. Também há um impacto no cálculo final da pena, em caso de condenação.

1) Foro privilegiado

A primeira divergência começou nos pedidos preliminares. Fux se manifestou para anular o processo como um todo, com base no entendimento de que o caso não deveria tramitar na Corte por julgar réus sem a prerrogativa do foro privilegiado.

— Nós não estamos julgando pessoas com prerrogativa de foro. Estamos julgando pessoas que não têm prerrogativa de foro — declarou Fux.

No seu voto, Moraes lembrou que a tese já foi votada pela Corte em outras ações. Em 2023, ao iniciar o julgamento das ações penais do 8 de janeiro, a maioria do STF entendeu que todos os casos relacionados aos atos antidemocráticos deveriam ser julgados pela Corte.

Na época, Fux acompanhou esse entendimento, que foi mantido na análise de mais de 1.400 ações já julgadas pelos ministros relacionados aos ataques às sedes dos Três Poderes.

2) Plenário x Primeira Turma

Outro ponto de divergência foi sobre o colegiado. Pelo regimento atual, a maioria das ações penais tramitam nas Turmas, mas Fux defendeu que, por envolver um ex-presidente, o caso deveria ser analisado pelo plenário completo.

O ministro argumentou que, no caso de o julgamento ocorrer mesmo no STF, deveria ser no plenário, não na Primeira Turma. Para o magistrado, como o Bolsonaro responde a processo por atos praticados durante sua Presidência, a análise deveria ocorrer no plenário, que tem a competência para julgar presidentes da República.

— Se (Bolsonaro) está sendo julgado como presidente, esta ação deveria se iniciar no plenário do Supremo Tribunal Federal — alegou. — Restringir a análise à Turma rebaixa a competência do Tribunal e silencia ministros que também deveriam se pronunciar.

Moraes, por sua vez, apontou que o regimento trata apenas do presidente, e não de antigos ocupantes do cargo. Esae questão também já foi analisada pela Primeira Turma no momento do recebimento da denúncia feita pela PGR.

Originalmente, a competência para julgar ações penais era do plenário. O congestionamento da pauta na época da análise do mensalão, julgado entre 2007 e 2013, motivou o deslocamento para as Turmas, em 2014, como forma de possibilitar a resolução das ações criminais no menor tempo possível. Em 2020, a competência voltou ao plenário. Em 2023, no entanto, voltou para as turmas, com voto contrário apenas de Fux.

3) Acesso às provas: o “tsunami de dados”

As defesas alegaram que receberam 70 terabytes de dados para analisar, sem organização mínima, o que teria prejudicado sua atuação.

Fux concordou com a reclamação da defesa sobre pouco tempo para analisar os dados e considerou que houve violação ao contraditório e à ampla defesa.

— Foi exatamente nesse contexto que as defesas alegaram cerceamento de defesa, em razão dessa disponibilidade tardia, que apelidei de um tsunami de dados (...). Para exercer o seu direito à autodefesa, o acusado precisa conhecer plenamente todas as provas produzidas contra si ou a seu favor. O devido processo legal vale para todos.

Moraes rejeitou a tese e disse que foram meses para a análise. No recebimento da denúncia, essa alegação já havia sido rejeitada. Na terça-feira, o relator ainda ressaltou que as defesas não apresentarem nenhum item novo que pudesse comprovar a importância do acesso ao material bruto.

— Não foi juntado um único print, uma única gravação, um único documento importante ou pertinente. São oito equipes de advogados que, em quase quatro meses, ficaram com todas as provas que elas mesmas pediram. E nada de pertinente foi apresentado.

4) Suspensão da ação contra Ramagem

O deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) teve parte do processo suspensa pela Câmara dos Deputados, mas o STF decidiu que isso só valeria para os crimes supostamente cometidos após sua diplomação, deterioração de patrimônio e dano qualificado. A defesa solicitou que a suspensão também alcance o crime de organização criminosa armada, por ter caráter permanente.

Moraes considerou que, como o crime de organização criminosa foi cometido antes da diplomação, não poderia ser suspenso, nos termos da Constituição, e manteve a decisão anterior do STF.

— Por unanimidade no julgamento da questão de ordem nessa ação penal, tendo por fundamento, como sabemos, a inaplicabilidade do artigo 53, parágrafo terceiro, da Constituição Federal, aos crimes aos crimes praticados antes da diplomação.

Já Fux concordou o caráter permanente do crime de organização criminosa e votou pela suspensão:

— Considerando que o crime de organização criminosa é, por essência, delito de natureza permanente, há suficiente razão para que este tema seja revisitado.

5) Organização criminosa

Durante seu voto, Moraes afirmou que Bolsonaro liderou a organização criminosa que tentou um golpe de Estado após a vitória do presidente Lula na eleição de 2022.

— O réu Jair Messias Bolsonaro exerceu a função de líder da estrutura criminosa e recebeu ampla contribuição de integrantes do governo federal e das Forças Armadas, utilizando-se da estrutura do Estado brasileiro para implementação de seu projeto autoritário de poder, conforme fartamente demonstrado nos autos — disse Moraes. — Jair Messias Bolsonaro foi fundamental para reunir indivíduos de extrema confiança, do alto escalão do governo federal, que integravam o núcleo centro núcleo central da organização criminosa.

Fux argumentou que o crime de organização criminosa se caracteriza apenas se há provas de que os réus têm o objetivo de ficar associados para a prática de novos crimes, por tempo indeterminado. O ministro defendeu que não basta apenas a reunião de quatro pessoas ou mais para o cometimento de um crime “específico”, porque seria necessário ter “estabilidade, permanência e intenção" de cometer delitos futuros.

— A acusação não indicou a presença dos elementares do tipo penal, tampouco o efetivo emprego de arma de fogo. O que se descreveu foi concurso de pessoas para delitos específicos, sem estabilidade e permanência — disse

6) Dano qualificado x dano a bem tombado

A denúncia apontou crimes de dano qualificado (previsto no Código Penal) e de deterioração de patrimônio tombado (que está na lei ambiental) em decorrência dos atos de vandalismo ocorridos no 8 de Janeiro.

Para Fux ministro, não ficou comprovada a responsabilidade e autoria de cada acusado.

— O contexto de um evento multitudinário (relativo a multidões, como o caso do 8/1), embora dispense um detalhado, exagerado, exame da conduta de cada réu, ele não desobriga o órgão acusatório em estabelecer um liame (vínculo) mínimo entre cada acusado e o ato ilícito. E esse vínculo não foi demonstrado — afirmou Fux.

Moraes manteve os danos no rol das acusações, reforçando que houve destruição concreta de patrimônio público e tombado, com prejuízos superiores a R$ 20 milhões, vinculados diretamente aos acusados.

7) Abolição violenta do Estado Democrático de Direito

O crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito está previsto no Código Penal para punir tentativas de suprimir ou restringir o funcionamento dos Poderes constituídos. A PGR incluiu nessa acusação discursos de Jair Bolsonaro e entrevistas em que ele atacava ministros do Supremo e questionava o sistema eleitoral.

Fux rejeitou esse enquadramento. Para ele, falas e bravatas políticas, ainda que duras ou reprováveis, não configuram tentativa de abolição do regime democrático, que exige atos concretos de deposição do governo legitimamente eleito.

— Não se pode admitir que possam configurar tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito discurso ou entrevista, ainda que contenham rudes acusações aos membros de outros poderes. Muito menos podem ser criminalizadas por aplicação de petições ao Judiciário contendo questionamentos ao sistema eleitoral.

O ministro votou para rejeitar essa acusação contra seis dos oito réus, votando para condenar apenas o tenente-coronel Mauro Cid e o ex-ministro Walter Braga Netto.

Moraes, em sentido oposto, votou pela condenação nesse ponto. Para ele, a preparação golpista foi “violentíssima” e não se tratou de discursos isolados, mas de uma trama organizada para restringir o funcionamento das instituições democráticas.

8) Golpe de Estado

O Código Penal também define o crime de tentativa de golpe de Estado, descrito como "tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído".

Para Fux, contudo, esse crime é apenas um meio para atingir a abolição do Estado Democrático de direito.

— A conduta descrita no artigo 359-M, golpe de estado, é meio para atingimento da finalidade tipificada no 359-L, abolição do Estado Democrático de Direito. O golpe é meio para a abolição do Estado Democrático de Direito.

Moraes considera que os dois crimes são autônomos e podem ocorrer tanto de forma separada quanto conjunta.

— Ao criminalizar a conduta de restringir o exercício dos poderes constitucionais, o artigo permite, como no caso em questão, que o chefe do Executivo, no exercício do seu mandato, pratique diversas condutas criminosas por meio de grave ameaça ou ameaça ou violência para impedir ou restringir o pleno exercício do Poder Judiciário.

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