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Na volta de 'Carlota Joaquina', Nanini, Marieta e Carla Camurati lembram: 'Não tinha nada. Por isso o filme é inventivo'

Longa marcou retomada do cinema brasileiro há 30 anos e, no retorno aos cinemas em cópia em 4K, protagonistas e diretora falam de perrengues das filmagens: roupa pesada e peruca no verão 40 graus

Por Agência O Globo - 28/07/2025
Na volta de 'Carlota Joaquina', Nanini, Marieta e Carla Camurati lembram: 'Não tinha nada. Por isso o filme é inventivo'
(Foto: )

O cinema brasileiro vive um momento mágico em 2025. Entre janeiro e julho, nada menos que 100 produções nacionais foram lançadas comercialmente no Brasil. No exterior, o país viu as conquistas do Oscar de melhor filme internacional por “”, de Walter Salles, além de prêmios nos festivais de Berlim e Cannes para “O último azul”, de Gabriel Mascaro, e “O agente secreto”, de Kleber Mendonça Filho. Há 30 anos, o cenário era bem diferente. Após a extinção da Embrafilme pelo governo de Fernando Collor de Mello, em 1990, o audiovisual nacional viveu tempos de terra arrasada, que só começou a se reverter três anos depois com a promulgação da Lei do Audiovisual, já no governo de Itamar Franco. Em 1992, apenas três produções nacionais foram lançadas nos cinemas. No ano seguinte, foram quatro. Até que, nos primeiros dias de 1995, uma comédia sobre a vinda da família real portuguesa ao Brasil chegou às telas fazendo barulho e dando o pontapé inicial no que ficou conhecida como a “retomada do cinema brasileiro”.

O filme em questão era, é claro, , que levou cerca de 1,3 milhões de pessoas aos cinemas. Passadas três décadas, a comédia retornará aos cinemas no dia 14 de agosto, em cópia remasterizada em 4K, com apoio da Petrobras. Aproveitando a volta às telas da produção, O GLOBO organizou um reencontro entre Carla e seus protagonistas, e , no apartamento da diretora no bairro da Gávea, na Zona Sul do Rio, para navegar pelas memórias da parceria entre eles.

— Tem sido muito especial não só rever o filme, mas trazê-lo para hoje. Vamos lançar em 4K, com som 5.1. O som era mono originalmente — lembra Carla, de 64 anos. — Não tínhamos nada, e acho que por isso ele é tão inventivo. É engraçado, mas não sei se conseguiríamos fazer esse filme da maneira que se produz hoje.

Marieta, de 78 anos, concorda:

— O filme se alimentava muito da falta de condição, tudo era estímulo. Não tinha grana pra fazer um material? A Carla pegava um papel aqui, amarrava isso, pintava aquilo, fazia não sei o que. Foi impressionante como a precariedade conseguiu virar uma extrema criatividade.

Sem a pressão de fazer o mais fiel dos registros históricos, as áreas de direção de arte, cenários e figurinos foram algumas que precisaram mergulhar na criatividade para combater as limitações orçamentárias. Carla se diverte ao lembrar que um dos itens que a produção gastou dinheiro foi a peruca usada por Nanini em sua caracterização como Dom João VI. E que o objeto, produzido em Londres com cabelos reais, quase não foi aproveitado.

— A peruca não me servia. Mas aí eu virei ao contrário e ficou maravilhosa — conta o ator de 77 anos.

O trio lembra que o personagem de Dom João VI foi o principal alvo de críticas por parte de historiadores e monarquistas à época do lançamento. Muitos contestaram o fato do filme não retratá-lo como um verdadeiro estatista.

— Queria falar da nossa história, mas com o nosso humor. E é um momento da história em que tudo é atabalhoado, tudo é confuso. Eles vieram fugidos para o Brasil — diz Carla, que inseriu um narrador na história para suprir as dificuldades financeiras. — Não é pra ver o filme ao pé da letra. Eu sabia que precisava de um narrador para suprir os buracos necessários. E sabia que teríamos uma liberdade ao retratarmos a história a partir da imaginação de uma menina. Isso tirou um pouco esse compromisso com a verdade histórica.

Carlota e Dom João

Carla lembra que Nanini foi de cara sua opção para interpretar o monarca. Ela já conhecia o ator do trabalho no curta-metragem “Bastidores” (1990), sobre a produção da peça “O mistério de Irma Vap”. Já Marieta conta que precisou lutar pelo papel.

— Eu praticamente me impus, me atraquei na personagem, porque a Carla me torturou (Risos). Eu fazia testes e ela dizia: “não sei se é bem isso”. Eu ia pra casa e ensaiava castanhola sem parar. Eu falava: o que mais eu tenho que fazer pra conquistar ela — se diverte a atriz. — Queria muito fazer essa personagem. A Carlota foi a personagem pela qual mais batalhei na minha vida.

A diretora conta que foi tomada pela dedicação de Marieta. Rindo do relato da atriz, Carla nega a “tortura”, mas admite que no primeiro momento pensou em escalar uma dançarina espanhola no papel, por vislumbrar rompantes muito característicos da dança na personagem. Ela também tinha medo de não conseguir pagar pelo salário da atriz.

Orgulhosa do trabalho e do sucesso do filme há 30 anos, Marieta comemora o atual momento do audiovisual no país, mas tem um desejo:

— Temos que parar de retomar. “Carlota” foi símbolo da retomada do cinema. Mas, de repente, veio um governante com pânico das artes, e desfez e dificultou tudo de novo. Precisamos de uma linha contínua de crescimento.

‘Homem com H’:

Para além da função de diretora, Carla Camurati foi responsável pelo roteiro, ao lado de Melanie Dimantas, e pela produção, em parceria com Bianca de Felippes, de “Carlota Joaquina, princesa do Brazil”. Ela também fez as vias de distribuidora. Sem grande verba para divulgação, Carla pensou a distribuição do filme como uma “trupe de teatro”. Assim, viajou o Brasil com o elenco apresentando o filme em cada praça, garantindo o interesse da imprensa local. Trinta anos depois, a cineasta lembra com carinho da experiência. E não faria nada diferente.

— Acho que o filme é totalmente atual e redondo do jeito que ele é, com uma energia muito potente de todo mundo que participou. Estávamos todos muito felizes fazendo o filme — diz Carla.

Entre pitombas e trovões

Bem-humorado, Marco Nanini discorda:

— Teve uma vez que eu fiquei muito irritado. Porque me fizeram esperar horas para filmar. Eu com aquela roupa pesada, com peruca, esperando pra filmar no verão de 40 graus em Paquetá — lembra o ator, que deixou a irritação de lado por causa de uma fruta. — A produção descobriu uma pitombeira e pediu para uns meninos subirem e pegarem um cacho enorme para mim. Eu sou tarado por pitombas. Passei o resto da tarde feliz.

Outro momento de dificuldade do ator foi gravar a cena da fuga de Dom João de Portugal. Claustrofóbico de precisar tomar anestesia para fazer ressonância, revela, ele sofria ao gravar nos túneis de São Luís, no Maranhão (cidade usada para reproduzir as ruas e construções de Lisboa). A solução foi vendar o ator aproveitando-se da coincidência de Dom João sofrer com o medo de trovões.

Marieta Severo fala com orgulho do trabalho na comédia. E vê paralelos entre os dias atuais.

— O filme mostra o início de uma burguesia nacional que está aí presente. Eles queriam imitar Carlota Joaquina e agora querem imitar os Estados Unidos — conta a atriz.

Casamento na ficção

Marieta e Nanini são reconhecidos por muitos pelo trabalho de anos na série “A grande família”, exibida entre 2001 e 2014 na TV Globo. Mas a parceria entre a dupla vem de antes mesmo de “Carlota Joaquina”. Eles se conheceram em 1973, quando atuaram na peça “As desgraças de uma criança”.

— Nossa relação parece que vem da maternidade. Ele é meu marido absoluto. Além de “A grande família”, fomos marido e mulher em “A comédia da vida privada” (1995), nas peças “Quem tem medo de Virgínia Woolf?” (2000) e “Solitários” (2002) — lembra a atriz.

Nanini se diverte:

— Não existe casal mais comprometido que nós dois.

'Carlota Joaquina' no GLOBO

1993: O GLOBO acompanhou a produção de “Carlota Joaquina, princesa do Brazil” ativamente desde o início. Em maio de 1993, meses antes do início das gravações, o jornal retratou uma “corrida do ouro” na disputa pelas novas verbas da Lei do Audiovisual. À época, além de Carla Camurati, cineastas como Neville D’Almeida, Walter Lima Jr., Ivan Cardoso e Luiz Carlos Barreto buscavam financiamento para projetos. Em dezembro, o repórter Luiz André Alzer visitou as filmagens da obra em São Luís, no Maranhão, e retratou a experiência em matéria de capa do Segundo Caderno. “Cinema tem que enganar mesmo. Não é preciso sair do Brasil para filmar Portugal, Espanha ou qualquer outro lugar que seja. ‘Carlota Joaquina’ é uma maneira lúdica de falar da história do Brasil. 0 filme é uma comédia natural porque a nossa história é uma verdadeira comédia”, disse Carla à reportagem à época.

1994: O jornal acompanhou com atenção as expectativas para lançamento da obra. Em novembro de 1994, havia a previsão de que o filme fizesse sua estreia no Festival de Cinema de Brasília. Poucos dias depois, no mesmo mês, reportagem de Eros Ramos de Almeida anunciou a “desistência de Carla de levar a princesa à capital do país”. À época, a coordenadora do festival, Maria Luiza Dornas, justificou: “A Carla via a primeira cópia e não gostou. Segundo ela, será preciso refazer o som.”

1995: “Carlota Joaquina” chegou aos cinemas brasileiros no dia 6 de janeiro de 1995. “Rei morto, rei posto. O cinema nacional precisava mesmo de um pitstop para se abas tecer de sangue novo e nova mentalidade. Co mo outros filmes saíram re centemente do box, ‘Carlota Joaquina, princesa do Brasil’, da diretora estreante Carla Camurati, revela uma saudável preocupação de se comunicar com o público sem achar que ele é burro”, destaca crítica do Bonequinho publicada no RioShow da sexta-feira de estreia.

O texto assinado por Eduardo Souza Lima destaca o trabalho dos protagonistas: “Marieta Severo está ótima como Carlota e Marco Nanini põe o filme no bolso com seu indolente e porcalhão D. João. Carla acertou também ao mostrar um Rio do século XIX sujo, ensolara do e suarento — obra do fotógrafo Breno Silveira —, bem diferente das novelas de época da TV, bem mais próximo da realidade.”