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Temporada França-Brasil: 'Em Paris há tanta mistura quanto no Rio', diz diplomata responsável pela programação
Série de eventos que visa fortalecer a cooperação entre os dois países vai privilegiar debates sobre ecologia, democracia e diversidade

Inicialmente, a especialidade da diplomata francesa Anne Louyot era o Leste Europeu (ela fala russo), mas seu primeiro posto foi em Brasília (o marido entende de América Latina). Todo mundo disse que era melhor ter ido para o Rio, porque Brasília era “um horror”. Mas ela logo se apaixonou pela cidade. E pelo país. Leu Guimarães Rosa e (“um choque”), se encantou com a força de e no palco, assistiu ao impeachment de e conheceu a força dos movimentos sociais brasileiros.
Maria Bethânia cita obstáculos para ampliar turnê:
'Gosto de ver ator na lama':
Todo esse conhecimento acumulado veio a calhar quando foi nomeada comissária da Temporada França-Brasil, uma série de eventos para promover o intercâmbio cultural entre os dois países que se estende de agosto a dezembro em 15 cidades, de Belém a Porto Alegre. As mais diversas áreas da cultura serão contempladas: da música às artes visuais, da gastronomia à literatura, do cinema ao esporte. A abertura será em 18 de agosto, no Museu Nacional, em Brasília.
Toda a programação foi construída ao redor de três eixos: meio ambiente, diversidade e democracia. Eventos como a Bienal de Arte de São Paulo, o Festival de Cinema do Rio e a Festa Literária das Periferias (Flup) terão forte presença francesa (e francófona). A Temporada Brasil-França, aliás, está em curso desde abril do outro lado do Atlântico (e continua até setembro) sob o comando do diplomata Emilio Kalil.
Vik Muniz:
Em maio, a comissária Anne Louyot recebeu o GLOBO na sede do Institut Français (parceiro do Instituto Guimarães Rosa na empreitada), em Paris. Nesta entrevista, ela apresenta os destaques da Temporada, fala os desafios que dois países devem enfrentar juntos, aponta lições que o Brasil pode dar à democracia francesa e afirma que “nas ruas de Paris, há tanta mistura quanto nas do Rio de Janeiro”.
Quais são os objetivos da Temporada França-Brasil 2025?
Promover a cooperação cultural entre os dois países. Diferentemente dos americanos, não pensamos diplomacia cultural como soft power nem nos limitamos a promover nossa cultura. O pilar da nossa diplomacia cultural é a diversidade, queremos construir pontes. Defendemos a cultura viva, que não tem necessariamente uma nacionalidade. Todos os projetos da Temporada são resultado da cooperação entre instituições francesas e brasileiras que vão continuar dialogando depois de terminados os trabalhos.
Raul Seixas, 80 anos:
O que a França espera dessa cooperação?
Infelizmente, a cooperação com o Brasil foi reduzida no governo Bolsonaro. O presidente propôs a temporada ao presidente para relançar nossa parceria nos âmbitos cultural, universitário, científico etc. Nosso primeiro objetivo é aprofundar e diversificar a cooperação franco-brasileira e buscar respostas comuns aos desafios do nosso tempo, como a crise ecológica.
Que outros desafios devem ser enfrentados em conjunto?
A defesa da democracia, que está deixando de seduzir os mais jovens. Precisamos de novos modelos democráticos. Pensar a diversidade também é prioritário. O Brasil, a França e a África têm relações históricas muito fortes. Marcadas pela colonização, é verdade. A partir das nossas diferenças, queremos trabalhar juntos e renovar essa relação. Toda a temporada, das exposições aos concertos, vai girar em torno desses três temas: ecologia, democracia e diversidade.
Pode dar exemplos?
Em São Paulo, vamos fazer uma edição do Festival Agir Pour le Vivant (Agir pelo que vive) para pensar a organização ecológica da sociedade. Estamos colaborando com organizações que vão acolher artistas que trabalham com a questão ecológica, como a Labverde, no Brasil, e a Coal, na França. Também em São Paulo, vamos montar a exposição “O poder de minhas mãos”, dedicada a artistas africanas que trabalham com as questões da memória e da vida social. A Flup vai acolher uma grande delegação de autores caribenhos. Haverá também eventos sobre, teórico da crioulização que nos ajuda a pensar a diversidade.
Em que âmbito vão se dar os debates sobre democracia?
Ume exemplo é o Fórum França-Brasil: Juventude e Democracia, com 40 jovens brasileiros e 40 jovens franceses, de 18 a 35 anos, convidados a discutir o futuro da democracia. Nossas juventudes precisam dialogar, porque são elas que vão construir o mundo de amanhã, que vão refundar a democracia.
Ideologias autoritárias têm ganhado espaço tanto no Brasil quanto na França.
A crise da democracia é mundial e países com democracias fortes precisam pensar juntos. Na Europa, a sociedade civil se organiza em função da força do Estado. No Brasil, é em função da fraqueza do Estado, para atuar onde ele é ausente. O dinamismo da sociedade civil brasileira é um modelo para nós. A Central Única das Favelas (Cufa) é exemplo incrível de organização do empreendedorismo periférico, porque não existe democracia sem direitos sociais e econômicos. As experiências de grupos como os sem-terra, os sem-teto, os indígenas e os quilombolas brasileiros nos permitem pensar um novo conceito da democracia, diferente daquele da Revolução Francesa, que dependia da unicidade da nação e na redução das diferenças internas.
A cultura brasileira é profundamente africana. Como vê a influência africana na cultura francesa contemporânea?
É fundante. Temos uma imensa população de africanos e descendentes que contribuem em todos os aspectos da cultura francesa. Um autor como (senegalês) ganhar o Goncourt (maior prêmio literário francês) tem um enorme significado. A cultura francesa é miscigenada, o que nem todas as pessoas aceitam, infelizmente. A extrema direita não aceita essa cultura viva, enriquecida pelas culturas da África e também da Ásia. Em Salvador, faremos o Festival Nosso Futuro, um encontro entre o Brasil, a França e a África.
Os franceses ainda têm fascínio pelo Brasil tropical?
Sim. Pelo Brasil tropical, a Amazônia, o carnaval, a música. Nosso desafio é apresentar um outro Brasil, que também é fascinante. Os brasileiros também adoram a França, mas às vezes têm uma imagem arcaica, de uma França branca, loira. Nas ruas de Paris, há tanta mistura quanto nas do Rio de Janeiro. Nossas sociedades precisam se conhecer de verdade. É urgente trabalharmos juntos, porque o momento é grave.
Confira os destaques da Temporada França-Brasil:
Festival Convergências (Brasília, de 18 a 23/8): Realizado no SesiLab, no Museu Nacional e na Biblioteca Nacional, o evento reunirá música instrumental, exposições, arte circense e debates sobre inovação e cultura.
“O poder de minhas mãos” (São Paulo, de 23/8 a 18/1/2025): No Sesc Pompeia, a exposição, que já passou por França e Angola, apresentará obras de artistas africanas, além de artistas brasileiras convidadas especialmente para esta edição.
Exposição de Dominique Gonzalez-Foerster (São Paulo, de 30/8 a 1º/2/2025): A Pinacoteca receberá uma uma instalação imersiva da artista contemporânea francesa, reconhecida por transitar entre o cinema, a música e as artes visuais.
“Horizontes fundidos: Pierre Fatumbi Verger e as pontes culturais” (Salvador, de 29/8 a 29/9): A exposição trará imagens do acervo da Fundação Pierre Verger e do Instituto Fundamental da África Negra que retratam a evolução de Verger como fotógrafo e pesquisador a partir de sua chegada ao Nordeste brasileiro, nos anos 1940.
“Ecos da Amazônia: Orquestra de Jovens Franceses e Brasileiros” (Belém, 3 e 4/12): O projeto visa reunir de forma duradoura jovens músicos da Guiana Francesa e do Norte do Brasil para formar a Orquestra Amazônica dos Jovens.
“Descolonizando museus: modos de fazer”(Recife, de 27 a 30/10): O seminário internacional reunirá representantes de instituições do Brasil, da França, de Senegal e do Benin para discutir como transformar as práticas museológicas.
Fórum Econômico Franco-Brasileiro de Transição Energética (Rio de Janeiro, 4/11): O evento discutirá ações para enfrentar a crise climática e contará com a presença do presidente francês Emmanuel Macron.