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Recomeçar: Uma segunda chance para quem não teve nenhuma

Projeto do MPAL leva cursos profissionalizantes para jovens em conflito com a lei

Por Ana Beatriz Rodrigues 28/01/2024
Recomeçar: Uma segunda chance para quem não teve nenhuma
O complexo oferece cursos para preparar os jovens para o futuro, incluindo aulas de artesanato (Foto: Ana Beatriz Rodrigues)

No ano de 2018, a Promotoria da Infância e Juventude de Arapiraca observou um apelo social persistente: atos infracionais motivados pelo desespero diante da escassez de oportunidades de emprego. A partir desse cenário e alinhada à sua missão de proteger a sociedade e atuar como uma instituição eficaz na defesa das questões sociais, o Ministério Público de Alagoas (MPAL) lançou, no ano seguinte, o projeto "Recomeçar – Oficina de Jovens Aprendizes". A iniciativa alterou a trajetória de alguns menores em conflito com a lei, proporcionando-lhes novas perspectivas e oportunidades.

Com apenas 16 anos, M.A.S., natural do agreste do estado, já conhece um lado da vida que muitas pessoas nem chegam a experimentar: a privação de liberdade e o mundo do crime. Ao conversar com a equipe de reportagem, o tímido jovem relata ter um sonho humilde, e assim como seu padrasto, quer ser pedreiro. O menor disse que, quando 'sair', vai fazer um curso de pedreiro de alvenaria e começar a trabalhar. Durante toda a conversa, o olhar refletia a perspectiva de um futuro preocupante e incerto, que necessita de atenção do poder público.

Assim como M.A.S, há outros 22 mil adolescentes e jovens em conflito com a lei nas 461 unidades socioeducativas em funcionamento em todo o país, de acordo com um levantamento feito em 2023 pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ). O estudo ainda apontou que a maioria dos menores infratores são do sexo masculino e estão internados, ou seja, estão 24h nas unidades socioeducativas.

Os adolescentes em conflito com a lei são jovens, ainda abaixo da idade penal, que cometem atos classificados como crimes. No entanto, devido à sua idade, não podem ser responsabilizados como adultos, conforme estabelece o artigo 228 da Constituição Federal, que declara inimputáveis os menores de 18 anos. Nesse contexto, as ações praticadas por esses jovens são denominadas infrações ou 'atos infracionais', e as medidas aplicadas consistem em penalidades socioeducativas, sendo a internação limitada a um período máximo de 3 anos.

Em Alagoas o cenário é muito semelhante ao nacional, segundo a Secretaria de Prevenção a Violência (SEPREV) por meio da Superintendência de Medidas Socioeducativas (SUMESE), hoje existem 154 adolescentes em conflito com a lei, sejam eles em regime de internato ou em semiliberdade. Cerca de 97% são compostos por jovens do sexo masculino entre 12 a 21 anos e 1/3 se autodeclaram negros.

De acordo com Isadora Costa, coordenadora jurídica da SUMESE, tem-se observado um padrão consistente nos últimos anos ao analisar o perfil dos menores em conflito com a lei. Hoje, eles são configurados das seguintes formas:


POUCA OU NENHUMA CHANCE

O superintendente de medidas socioeducativas da SUMESE, Otávio Rego, explica que os problemas dos adolescentes que estão hoje no complexo podem ser resumidos em uma única palavra: ausência. Aliada à negligência, seja do Estado, da família, da educação, de oportunidades, dos cuidados com a saúde e da formação profissional.

A maioria dos jovens em conflito com a lei, já não frequenta a escola regularmente há pelo menos dois anos e vivem com suas famílias com no máximo um salário mínimo, e conforme os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em 2021, o Brasil tinha 12,7 milhões de jovens que não estavam estudando e nem estavam ocupados. Os maiores percentuais estavam no Maranhão (37,7%) e Alagoas (36,6%) e os menores, em Santa Catarina (12,2%) e Paraná (17,9%).

Dados fornecidos pela equipe pedagógica da SUMESE mostram que aproximadamente 70% dos jovens que adentram o complexo socioeducativo possuem baixo ou nenhum nível educacional, como é o caso do M.A.S. Alguns frequentavam a escola, porém de maneira irregular. Além da limitação decorrente da menoridade, o desemprego também se destaca no complexo, resultando na presença desses jovens em trabalhos informais, sem perspectiva ou renda digna.

Para combater esse problema e outros problemas, a própria unidade oferece a educação básica e cursos profissionalizantes, entre eles, o próprio projeto Recomeçar, pois as ausências do passado não podem ser desfeitas. “A única coisa que podemos controlar e melhorar é o futuro, e é assim que estamos trabalhando os jovens, tentando dar uma chance, pensando e investindo no ‘daqui para frente’”, enfatiza o gestor Otávio.

Dados: SUMESE
Dados: SUMESE

A ausência de certos elementos ou políticas públicas desafia o futuro de alguns jovens. Pode-se destacar que a falta de acesso a uma educação de qualidade, a fragilidade na estrutura familiar e as condições de vulnerabilidade associadas à pobreza são pontos fortes e persistentes na socioeducação.

“Todos os aspectos estão intrinsecamente relacionados a questões sociais. Mas um deles é muito evidente: a fragilidade na estrutura familiar. Que reflete na falta de transmissão de valores, caráter e personalidade. Nesse contexto, a carência de exemplos positivos na vida dos jovens muitas vezes decorre de pais imersos no sistema profissional ou, em menor escala, de mães que enfrentam problemas com álcool ou envolvimento com o tráfico, mães solos”, explica o psicólogo do Complexo Socioeducativo, Fernando Berbeth.

Já a assistente social Marília Omena reitera o pensamento compartilhado pela equipe multidisciplinar que trabalha na unidade socioeducativa: tentar enxergar além do que aconteceu para a sociedade, que é o crime, e perceber o menor infrator como alguém que precisa ser acolhido devido a todas as faltas que o acompanharam durante a vida

“Costumamos ver o jovem como o vilão, o culpado principal, até que ouvimos sua história. Muitos são vítimas da extrema pobreza, já passaram fome, sofreram violência, espancamentos, abusos psicológicos e sexuais. Além disso, é comum encontrar jovens que nem possuem certidão de nascimento, não possuem nem um nome. Para os poderes públicos, eles nem existiam, até cometerem o ato infracional. Não concordamos com o que fizeram, mas compreendemos o que os motivaram”, acrescenta Marília.

Assistente social reforça a importância de trabalhar o histórico do jovem.
Assistente social reforça a importância de trabalhar o histórico do jovem. Crédito - Ana Beatriz Rodrigues

Muitos adolescentes que ingressam no complexo foram criados por seus avós, conforme indicam dados internos da SUMESE. Alguns deles por escolha, outros devido ao abandono materno e/ou paterno e, em alguns casos, até mesmo por crimes anteriores, como o caso de filhos cujos pais foram vítimas de homicídios ou feminicídios. Diante dessas ausências, as organizações criminosas encontram espaço para atuar onde a presença familiar é escassa e as políticas públicas são deficientes.

“Quando a formação de um indivíduo carece de figuras responsáveis, como pai e mãe, seja para suprir necessidades afetivas ou materiais, o tráfico assume esse tipo de 'responsabilidade', oferecendo aos jovens a oportunidade, por exemplo, de possuir bens materiais como celular e roupas de marca”, destaca o psicólogo Fernando Berbeth.

A coordenadora jurídica da unidade, Isadora Costa, afirma que, graças à parceria com o Ministério Público Estadual, Ministério do Trabalho e com o sistema S — composto principalmente pelo Senai, o Sesi e o Senah —, o complexo educacional hoje pode oferecer uma segunda chance por meio de cursos profissionalizantes. As aulas são planejadas e desenvolvidas para atender às demandas do mercado de trabalho, investindo, por exemplo, em cursos na área de tecnologia.

“A oferta de cursos é uma ferramenta que possui vários benefícios: a primeira é que os jovens ocupam a mente, a segunda é que podem aprender algo que pode ser útil não só para desenvolverem atividades aqui dentro, mas também lá fora, e, a terceira, é que saem especializados. Ampliamos a oportunidade para que lá fora, o jovem tenha pelo menos uma condição, um conhecimento básico, uma esperança”, conclui Isadora.


OPORTUNIDADE PARA RECOMEÇAR


A iniciativa do Ministério Público do Estado de Alagoas, em parceria com o sistema S, tem como foco oportunizar transformações na vida de jovens arapiraquenses em situação de vulnerabilidade social e socioeducandos com capacitação profissional e inserção no mercado de trabalho.

Um dos jovens contemplados pela iniciativa do MPAL é o C.S., que na falta de perspectivas de emprego e renda, cometeu um ato infracional aos 17 anos. Ao chegar no complexo, se deparou com vários jovens em situação parecida com a sua. Até que um belo dia, o adolescente foi selecionado para fazer um curso de assistente administrativo, um dos ofertados pelo programa Recomeçar.

“O programa é exatamente o que ele representa: um recomeço. No início, a gente fica pensando em como aquelas aulas vão fazer diferença na nossa história, mas aos poucos aprendemos não só a parte profissionalizante, mas também a identificar nossos pontos fortes. A partir dali, comecei um novo capítulo, que me fez repensar tudo o que eu não pensava antes, como um futuro melhor, envolvendo um emprego, um curso e pessoas que me apoiaram mesmo depois do que fiz”, relata C.S.”

As aulas acontecem no SENAC Crédito: Cortesia

Até o momento, o programa Recomeçar já realizou matrícula de 617 jovens no Sistema S, dos quais 371 alunos foram aprovados nas fases 1 e 2 dos cursos oferecidos, sendo 20% dos inscritos são jovens em conflito com a lei.

A seleção dos cursos foi planejada com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), considerando a aptidão de cada participante e pensando na integração bem-sucedida no mercado de trabalho local. Dessa forma, o objetivo era não apenas fornecer conhecimento, mas também promover oportunidades concretas para o desenvolvimento profissional e pessoal desses jovens.

Os cursos acontecem em parceria com o SENAC, inclusive utilizando o espaço físico deles. Atualmente o projeto expandiu e as promotorias com atribuição na infância e juventude de Santana do Ipanema e de Delmiro Gouveia também oferecem cursos profissionalizantes junto de suas respectivas comarcas.

“Um dos maiores desafios tem sido sensibilizar a sociedade no que se refere ao acolhimento desses jovens, os quais ainda enfrentam o estigma de terem praticado algum ato em conflito com a lei e/ou de estarem inseridos em algum contexto de vulnerabilidade social”, explica Maurício Wanderley, promotor da 7ª Promotoria de Justiça de Arapiraca e um dos coordenadores do projeto.

De acordo com relatório do projeto Recomeçar, realizado em parceria com o Creas de Arapiraca, órgão responsável por monitorar jovens em regime socioeducativo, dos 95 adolescentes em conflito com a lei que participaram do projeto Recomeçar, apenas um reincidiu na prática de atos infracionais.

O diretor da unidade, Otávio Rego, reforça que os resultados do programa só se tornam evidentes após a conclusão do curso e quando os jovens deixam o complexo. “Ouvimos histórias de alguns jovens que tomaram rumos diferentes, como, por exemplo, C.S., que agora é nosso estagiário de assistente administrativo. Quando ele ingressou, nem imaginava que poderia estar ao nosso lado, desempenhando um papel tão fundamental em nosso quadro administrativo”, enfatiza.

O promotor Mauricio Wanderley evidencia que o projeto Recomeçar atua de maneira protetora. “Oferecer cursos profissionalizantes em vez de impor medidas socioeducativas a jovens em conflito com a lei representa um estímulo e motivação para que se envolvam e se interessem pela formação profissional. A escolha dos cursos é adaptada à escolaridade dos jovens, tornando a metodologia acessível e facilitando a consecução dos objetivos”, explica.

Após a conclusão do curso, o SENAC e o MPAL colaboram na elaboração dos currículos dos jovens, os quais são posteriormente encaminhados para as empresas parceiras. Nestas, ocorre o processo de seleção para o preenchimento de vagas. Destaca-se a parceria com a própria SUMESE, local que anteriormente representou um momento tão vulnerável na vida dos jovens e, agora, simboliza um novo capítulo em suas trajetórias.

O projeto foi tão certeiro que conquistou reconhecimento nacional, ficando em 1º lugar no Prêmio CNMP 2023. Juntamente com o programa Recomeçar, outros 27 programas e projetos foram finalistas do Prêmio CNMP 2023. Eles fazem parte das mais de três mil iniciativas cadastradas no Banco Nacional de Projetos (BNP), produto do Planejamento Estratégico Nacional, ferramenta responsável por coletar e disseminar práticas bem-sucedidas no Ministério Público.

“Foi uma grande satisfação receber o prêmio pelo Projeto Recomeçar pelo CNMP, órgão máximo de fiscalização dos Ministérios Públicos dos Estados do Brasil. Sentimento do dever cumprido como órgão de execução e gratidão a todos que contribuíram para o êxito do projeto”, finaliza o promotor.


No dia 28 de novembro, MPAL conquista prêmio CNMP 2023 Crédito: Cortesia
No dia 28 de novembro, MPAL conquista prêmio CNMP 2023 Crédito: Cortesia

Graças à iniciativa, hoje o C.S constrói uma nova vida, com perspectiva de emprego e um curso profissionalizante em mãos. “Quero ter meu próprio lar em um lugar tranquilo e favorável. Não quero parar aqui, tenho vontade de atuar também na área de almoxarifado. Às vezes, penso em fazer Arquitetura e Urbanismo, mas desistir e cometer outro ato infracional nunca mais”, conclui.

Apesar do Ministério Público do Estado de Alagoas ter conquistado o primeiro lugar no Prêmio CNMP 2023 no final do ano passado, é importante ressaltar que o verdadeiro vencedor da história é C.S, que assim como os outros 93 jovens que puderam, enfim, recomeçar.

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